No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.
Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
......
85 anos, Mãe!
Agora, que nos olhamos sem sombras a toldar o nosso amor.
Que a dor se fundiu com a compreensão e deu lugar à paz.
Agora, Mãe...! Posso dizer que caminhamos de mãos dadas num caminho único.
" Eu vou com as aves " e de vez em quando levo-te comigo.
Parabéns, Mãe.
(imagem de autor desconhecido)
Chegou com aqueles olhos muito vivos e o sorriso de outrora que me fizeram esquecer os muitos anos de vida e as marcas inegáveis no seu rosto de anciã. A velhice, além das dores de ossos e outras maleitas, trouxera-lhe também alguma serenidade e resignação perante as diversas coisas que ia gradualmente deixando de poder fazer no seu dia-a-dia.
Os últimos anos não tinham sido generosos com ela. Nunca se está preparado para uma velhice repentina, mesmo que a idade já seja avançada Para mim, que a observo em silêncio e sem valorizar aparentemente essa realidade cruel, também é doloroso assistir à galopada infernal da decadência que inevitavelmente vem com a velhice.
Mas naquele dia, ela vinha radiosa e feliz, na sua camisola nova e colar de pérolas, preparada para o jantar de Ano Novo em minha casa. Eu, atarefada com os preparativos, andava de um lado para o outro, cheia de energia, como ela sempre gostou.
É pela minha energia e vontade de fazer coisas que ela mede a forma como me sinto.
Ela sabe. Conhece-me como ninguém e confesso que isso muitas vezes me incomodou.
Mas, agora, já não me escondo do seu olhar.
Já não fujo. Já não "represento".
Deixou de ter importância desde que a comecei a "ver" de outro modo.
E temo que o que ela sempre diz, em cada Natal e Ano Novo que passa "Este vai ser o último", possa acontecer de um momento para o outro.
"Deus não podia estar em todo o lado e por isso criou as mães"
R. Kipling
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